9 de out. de 2013 | By: Fabrício

O dia que o futebol venceu o nazismo

Madrugada do dia 22 de junho de 1941. Começa a Operação Barbarossa, a invasão alemã à antiga União Soviética. Nos próximos dias os soldados alemães empreenderão a blitzkrieg, encontrando fortíssima resistência do exército vermelho apenas em Leningrado, Stalingrado e Moscou.
Não é que a resistência dos soviéticos no início da invasão alemã, às bordas da fronteira soviética, não tenha existido. Ela existiu! E a cidade de Kiev, na Ucrânia, foi um dos focos desta resistência. Milhares de civis engrossaram o exército e lutaram diretamente contra os alemães. Não ajudou muito, muitos soldados e civis morreram frente à tática de “guerra-relâmpago” imposta pelos alemães, mas os que sobreviveram às batalhas iniciais continuaram vivendo suas vidas. Ou tentaram vive-las da melhor maneira possível nas cidades ocupadas.

Josef Kordif, dono de uma fábrica de pão, vai reunir trabalhadores e outras pessoas que inicialmente lutaram contra os alemães e livrá-las das perseguições diretas da Gestapo. Nesta fábrica trabalhavam produzindo pão para os alemães em troca de um pouco de paz. Qualquer semelhança de Kordif com Oskar Schindler não é mera coincidência.
Entre os trabalhadores, Kordif identificou – no meio daquela multidão de pessoas sem casa que vagavam pelas ruas de Kiev após os combates – e empregou os jogadores do Dínamo, clube pelo qual ele torcia, e que era considerado por muitos o melhor time de futebol da Europa pré-guerra.
Kordif não só empregou como também incentivou os jogadores a manter o time. Durante a noite eles trabalhariam na fábrica, e jogariam futebol durante o dia. E para manter a integridade dos jogadores o time foi renomeado FC Start, já que a agremiação Dínamo estava proibida pelos alemães de manter qualquer atividade esportiva ou cultural.
Os alemães tentavam de todas as formas manter a normalidade em Kiev, apesar da proximidade dos combates. Sabendo que o padeiro tinha montado um time de futebol, os alemães decidiram deixar que algumas partidas fossem realizadas na cidade. O FC Start realizou suas primeiras partidas contra times formados por soldados alemães, húngaros e romenos.
E não perdia. Pelo contrário, só aplicava goleadas!
Só que as vitórias do Start começaram a perturbar os alemães, afinal de contas, todo provável símbolo de resistência – e o time formado por ucranianos era até certo ponto uma forma de resistência – deveria ser analisado e, quando considerado nocivo aos objetivos alemães, exterminado.
Os alemães então trouxeram da Hungria um time chamado MSG, para derrotar os ucranianos, mas não adiantou muito. Os jogadores-padeiros, mesmo após virar a noite trabalhando na fábrica, venceram os húngaros por 5 a 1. E na revanche, o placar de 3 a 2 para o Start mostrava definitivamente que os alemães deveriam conter aquele símbolo de resistência. Pelo menos eles pensavam desta forma.

FC Start X Flakelf, “o time da Luftwaffe”

Segundo Andy Dougan, no livro “Futebol e guerra: resistência, triunfo e tragédia do Dínamo na Kiev ocupada pelos nazistas”, o time convocado pelos oficiais alemães que estavam em Kiev foi o Flakelf, considerado na época um time de respeito, formado apenas por militares da Luftwaffe, a força aérea alemã. Inclusive este time servia de instrumento da propaganda nazista e suas glórias serviam de exemplo para justificar a “superioridade da raça ariana” – as aspas estão aí de propósito.


Não adiantou trazer de longe um time da “raça superior”. No dia 6 de agosto de 1942 o FC Start, que nesta altura do campeonato – perdoem, mas o trocadilho é inevitável – já desfrutava do respeito e da admiração do povo de Kiev, tratou de massacrar o Flakelf por vergonhosos 5 a 1. Depois desta derrota os alemães descobriram, enfim, que os inocentes padeiros que envergavam a camisa do FC Start na verdade eram os antigos jogadores do Dínamo de Kiev.
A ordem para matar todos os jogadores veio depressa de Berlim. Mas os oficiais sabiam que apenas matá-los não faria efeito. Pior que isto, criaria mártires desnecessários, além de deixar na população a imagem de jogadores vencedores que lutaram contra o nazismo. Decidiram então marcar uma revanche para o dia 9 de agosto.
O ambiente em Kiev era pesadíssimo, com provocações dos dois lados. Os soldados alemães estavam envergonhados e a população exultante com o feito de seus heróis. O estádio Zenit estava lotado para a partida – abaixo, o cartaz fazendo “propaganda” da revanche -, e os jogadores do FC Start receberam antes do jogo a visita de um oficial alemão que ordenou que na hora em que o árbitro entrasse em campo – nota: o árbitro era alemão -, ele deveria ser recebido por todos os jogadores com a saudação nazista, mãos direitas estendidas à frente e o grito “Heil Hitler”.
Na hora os jogadores do Flakelf fizeram a saudação, mas os jogadores do FC Start colocaram suas mãos direitas no peito e gritaram “Fizculthura!”, um grito soviético comum aos atletas daquela época.
Os alemães até saíram na frente, mas o primeiro tempo terminou 2 a 1 para os ucranianos. No intervalo eles sofreram novas ameaças dos oficiais da SS, até pensaram em desistir da partida, mas no fim do intervalo resolveram voltar a campo. E apesar de todas as jogadas violentas dos alemães que eram ignoradas pela arbitragem, foi um massacre! 5 a 3 para os ucranianos, com direito a um lance humilhante do atacante Klimenko: ele recebeu a bola de frente para o gol, driblou o goleiro e, com a bola em cima da linha, virou-se e chutou-a para o meio do campo, negando o gol, mas humilhando completamente os alemães.
O público no estádio “veio abaixo”!
Os alemães agiram, aparentemente, como bons perdedores. O FC Start ainda jogou mais uma partida contra uma outra equipe – e também venceu este jogo – mas dias depois os soldados alemães invadiram a fábrica e prenderam quase todos os jogadores-padeiros. Goncharenko e Sviridovsky foram os dois únicos que conseguiram escapar, pois não estavam na fábrica no momento da invasão, e permaneceram escondidos até a saída dos alemães em 1943.
O primeiro a morrer foi Kordif, que dava abrigo e emprego para os jogadores. Todos foram mandados para o campo de concentração de Siretz. Ao chegarem lá, os alemães mataram Kuzmenko, Klimenko e o goleiro Trusevich. Os outros jogadores sofreram torturas até a morte.
Time do Dínamo / FC Start

Até hoje estes atletas são lembrados pelo Dínamo de Kiev. Na frente de seu estádio existe um monumento erguido em 1971 em homenagem aos atletas que morreram defendendo, antes de tudo, a liberdade e o esporte. No monumento está gravada a frase:

“Aos jogadores que morreram com a cabeça levantada ante o invasor nazista.”

O exemplo dos jogadores do Dínamo certamente ajudou a inflamar a resistência aos nazistas. No dia 6 de novembro de 1943 Kiev foi retomada pelos soviéticos e a história do jogo foi espalhada entre as fileiras russas, tomando ares de lenda com o passar das semanas.
Dizem inclusive que os jogadores do Dínamo, quando casam, vão ao monumento depositar flores em homenagem à memória dos jogadores mortos. E as pessoas que até hoje tem os ingressos daquela partida em 1942 tem assento cativo no estádio.
Com relação à “lenda”, costuma-se aumentar ou diminuir uma passagem da história de acordo com o lado que conta a mesma. A verdade é que o Dínamo era sim um timaço na época e não podemos negar seu exemplo de heroísmo. Não sabemos ao certo se os placares dos jogos foram exatamente aqueles, mas a “lenda” permanece viva.

Referência:
DOUGAN, Andy. Futebol & guerra: resistência, triunfo e tragédia do Dínamo na Kiev ocupada pelos nazistas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2004.

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