Uso de documentos nas salas de aula ajuda
os alunos a compreender melhor o passado e mostra ainda que ele pode ser
interpretado de diversas maneiras.
Quando se
aprende História por meio de textos que pouco esclarecem sobre a origem das
informações e conclusões que contêm, corre-se um risco: acreditar que essa
disciplina oferece conhecimentos completos e definitivos do passado, em que não
haveria lugar para a dúvida e o desconhecimento. Nesses casos, dificulta-se, ou
mesmo se impede, a compreensão da natureza do conhecimento histórico, ao não
deixar claro que uma de suas principais características é a relatividade, que este conhecimento é
uma construção intelectual (feita
pelos historiadores, ainda que com método e critério) e provisória, pois se baseia em concepções e conceitos marcados pelas condições da época em
que são formulados, logo discutíveis.
Uma das formas
de contornar essa situação na sala de aula e desnaturalizar o conhecimento histórico – isto é, mostrar que ele
também é um elemento da cultura e da história – é usar as chamadas fontes
primárias da História, os documentos. Essa atitude, aliás, tem permitido cada
vez mais considerar a sala de aula como lugar também de produção de
conhecimento e de reflexão.
Se o que sabemos
sobre a história é simplesmente descrito ou narrado aos alunos, a tendência é
oferecer um saber hiperorganizado, sem divergências de interpretação, com se
evitássemos. As histórias nacionais “canônicas” que aprendemos na escola, como,
por exemplo, a história dos Estados europeus e a do Brasil, costumam ter esse
efeito; já a análise de documentos em sala de aula leva os alunos a compreender
que a realidade histórica jamais se apresenta pronta ou sequer organizada para
o historiador. Como toda realidade que desejamos conhecer, ela é um emaranhado
de fatos, relações, versões etc., cujo conhecimento requer muita pesquisa,
investigação, análise metódica, e os resultados podem variar de historiador
para historiador, dando margem a diferentes interpretações.
De saída, a
análise de documentos em sala de aula oferece ao aluno a oportunidade de
conhecer, pelo menos em parte, o trabalho do historiador, de saber como o
conhecimento histórico, ao qual ele tem acesso, é produzido. Em condições de
ensino mais favoráveis, abre-se para ele inclusive a possibilidade de compreender
alguns elementos centrais dos métodos históricos. Não que a metodologia da História seja mais um conteúdo a ser ministrado, mas aprender a interpretar os
documentos, a ter postura investigativa, a conhecer o valor das evidência (e
também da dúvida) são procedimentos imprescindíveis também ao exercício da
cidadania, pois dão condições aos jovens entender os “documentos” atuais, os
“textos” econômicos, políticos, culturais etc. correntes no mundo em que vivem.
O uso didático
de documentos no ensino de História provavelmente começou, na passagem do
século XIX para o XX, nos livros destinados ao ensino da língua portuguesa e da
leitura, que traziam textos considerados edificantes para o cidadão. Uma outra
porta de entrada deve ter sido o trabalho isolado de alguns professores,
selecionando e trabalhando documentos, uma vez que os compêndios tradicionais
costumavam se limitar a narrativas lineares e esquemáticas dos fatos que eram
então considerados mais importantes.
É tarefa do professor estimular os alunos a refletir sobre materiais que muitas vezes passam despercebidos no dia a dia, como charges, gravuras e notícias de jornais, transformando-os em documentos históricos.
De lá para cá,
muito se fez. Hoje, coletâneas de textos estão disponíveis no mercado
editorial, e os próprios livros didáticos trazem transcrições de documentos. A
ideia de que eles são indispensáveis ao ensino de História consolidou-se de tal
forma que este é um dos critérios de avaliação de livros didáticos a serem
comprados pelo Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação, para o
Programa Nacional do Livro Didático. E a multiplicação de meios de informação,
como os inúmeros sites disponíveis na Internet, torna cada vez mais fácil o
acesso aos documentos históricos.
Nunca é demais
lembrar, na companhia do historiador francês Jacques Le Goff, algumas das
condições em que qualquer documento histórico está inserido. Em primeiro lugar,
ele não é uma mera janela que se abre diretamente para o passado. Entre o
usuário do documento e o passado interpõe-se uma série de “filtros”, o primeiro
dos quais é a própria preservação do documento. Esta pode ser fruto do acaso,
da intenção ou, mesmo contraditoriamente, da indiferença por parte de seus
possuidores, que o esquecem, mas não chegam a destruí-lo. Um segundo “filtro” é
a seleção feita pelos pesquisadores, que escolhem alguns documentos e desprezam
outros, levando em conta a importância deles para a sua investigação
particular. Por fim, o documento deve ser entendido não como “o passado
preservado”, mas como resultado de uma primeira seleção operada por pessoas que
viveram no tempo em que o documento foi produzido, um certo olhar sobre o real,
não o real em si. Como afirmou Le
Goff, carregando propositadamente na ênfase, “No limite, não existe um documento-verdade.
Todo documento é mentira.”
A Carta de Pero Vaz de Caminha, por
exemplo, esteve esquecida durante três séculos num arquivo português.
Transformou-se em “certidão de nascimento do Brasil” só no século XIX, quando
alguns historiadores desejaram traçar uma narrativa nacionalista do país que
então começava a se formar e no qual cumpria afirmar a existência de certos
valores, como pátria e devoção cívica.
Carta de Pero Vaz de Caminha
Usado com mais
sofisticação, o documento pode gerar situações-problema, capazes de chamar a
atenção e suscitar dúvidas, cuja solução, buscada a partir de hipóteses
levantadas pelo professor, mobilizará a curiosidade e a participação do aluno.
Extremamente rico, este tipo de atividade reproduz, em outra escala, alguns dos
passos obrigatórios do historiador. O documento também serve também como
elemento provocador, que repõe em questão representações e atitudes do senso
comum e até mesmo conhecimentos históricos já cristalizados, estimulando o debate,
a busca de informações, a elaboração de argumentos.
Afinal, é este o
desafio: proporcionar condições para se ler os documentos do mundo, ousar ler o
mundo como um grande documento sobre o qual cumpre atuar.
REFERÊNCIAS:
LE GOFF,
Jacques. História e Memória.
Campinas, SP: Unicamp, 2003.
PINSKY, Carla
Bessanezi (org.). Novos temas nas aulas
de História. São Paulo: Editora Contexto, 2009.
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