“Não somente
tem havido falhas no diálogo entre o mundo acadêmico e o público em geral, como
existe uma surpreendente ignorância dentro mundo acadêmico sobre a natureza do
tráfico. Existem poucos resumos coerentes na literatura recente sobre o tráfico
de escravos tanto para a população quanto para a escola, e este insucesso em
divulgar as recentes pesquisas acadêmicas fez com que a discussão sobre o
tráfico se tornasse tão politizada e emocional que a maioria dos acadêmicos e
intelectuais se recusa a compará-lo com qualquer coisa que se aproxime de uma
análise racional”. (KLEIN, 2004, p. 17).
“Que aqueles indivíduos
humanitários, que são a favor da escravidão, coloquem-se no lugar do
escravo no porão barulhento de um navio negreiro, apenas por uma viagem da
África a América, sem sequer experimentarem mais que isso dos horrores da
escravidão; se não saírem abolicionistas convictos, então não tenho mais nada a
dizer a favor da abolição”. Mahommah G. Baquaqua, 1854.
Neste texto
tratarei do tráfico de escravos, o qual ao longo de quase quatro séculos
movimentou a economia de várias nações na Europa, África, Américas e Ásia. Em
especial o tráfico negreiro no Atlântico fora o responsável entre os anos de
1519 a 1867, de arrebatar mais de 11 milhões de vidas do continente africano,
transportando, homens, mulheres e crianças, para a Europa, mas especialmente
para as colônias européias nas Américas.
11 milhões é
apenas uma parcela deste total, onde não se inclui aqui o número de escravos
traficados através do Oceano Indico e por terra, através do deserto do Saara.
Se somarmos estes números, chegaremos bem próximos ou até mesmo passaremos dos
20 milhões de almas levadas embora de suas terras, casas e famílias. Mas, nesse
caso, em meio a este contingente monstruoso de vitimas do comércio de escravos
africanos que perdurou ao longo da Idade Moderna e pelo século XIX, falarei
neste texto, não sobre as perspectivas do tráfico em geral, mas sim da visão
dos escravizados a respeito desta prática que atormentou a história da
humanidade.
Assim, neste
relato falarei da experiência de dois escravizados, os quais após conseguirem
suas liberdades escreveram biografias relatando suas experiências como escravos
no Novo Mundo. Dessa forma, abarcarei o século XVIII com os relatos de Olaudah
Equiano e o século XIX com os relatos de Mohammah Garbo Baquaqua.
Se você é uma pessoa de estômago fraco ou de grande sensibilidade, sugiro que não prossiga com a leitura, porque os relatos das atrocidades aqui mencionados foram reais.
Se você é uma pessoa de estômago fraco ou de grande sensibilidade, sugiro que não prossiga com a leitura, porque os relatos das atrocidades aqui mencionados foram reais.
Olaudah
Equiano (1745-1797)
Olaudah
Equiano nasceu em 1745 no vale de Essaka, provavelmente Isseke, perto de Orlu,
na região de Nri-Awka/Issuama, nas terras dos ibos, hoje a atual Nigéria. Era o
caçula de sete irmãos, seu pai era um homem importante da vila, sua família era
abastada e influente, possuindo uma grande casa e vários escravos. A escravidão
já era praticada na África desde épocas remotas assim como o fora em outros
cantos do mundo. Porém a escravidão que Equiano se refere em sua infância era
bem diferente da escravidão vista nas Américas e na Europa, a qual ele
vivenciaria. Em África, os escravos entre alguns povos eram bem tratados, e
eram considerados como membros da família.
“Seu pai era
um homem importante, uma combinação de chefe de clã (okpala), homem de posses (ogaranya)
e ancião respeitado (ndichie) e membro do conselho (ama mala) que tomava
decisões por toda a aldeia”. (REDIKER, 2011, p. 120).
“Os parentes
próximos e distantes de Equiano eram, como todas as famílias, organizados num
clã patrilinear (umunne) dirigido por um chefe de família e, coletivamente, por
um conselho de anciãos”. (REDIKER, 2011, p. 121).
Equiano
dizia em sua autobiografia que sua sociedade vivia da coletividade, logo as
terras eram de propriedade comum, e ao mesmo tempo tanto homens e mulheres
trabalhavam juntos, possuindo algumas atividades especificas. Eles não
utilizavam dinheiro, já que o mesmo era raro na região, viviam basicamente da
agricultura e pecuária de subsistência, e os excedentes da produção
comercializavam através do escambo com as aldeias e vilas vizinhas.
“Os costumes
eram simples, poucos eram os luxos, mas eles tinham comida mais que o
suficiente e, além disso, “não havia mendigos”.” (REDIKER, 2011, p. 121).
A terra era
fértil e generosa, eles plantavam um tipo de inhame o qual era à base de sua
alimentação, com o qual produziam a partir da farinha deste, o fufu. Cultivavam
batata cará, bananas, pimentas, feijões, abóboras, milhos, melancias e outras
frutas. Também cultivavam algodão e tabaco, criavam bois, cabras e galinhas.
Fabricavam diversos tipos de objetos, ferramentas e outros produtos artesanais.
Equiano dizia
que havia um grande respeito com a religião, onde realizava-se os cultos
sagrados aos deuses e aos antepassados, eram celebrações muito importantes e
deveriam serem seguidas a arrisca, sem nenhum atraso. Entre a sua sociedade,
existia o chamado dibia, considerado o mensageiro entro o mundo dos mortos
e o mundo dos vivos, eras às vezes também o sacerdote, feiticeiro, curandeiro e
até mesmo conselheiro da aldeia. Era um homem muito respeitado e até temido.
“Os ibos
acreditavam que a linha entre o mundo dos homens e dos espíritos, ou entre os
vivos e os mortos, era fina e porosa. [...]. Alimentar o espírito por meio de
sacrifícios (aja) era fundamental para a boa sorte. O dibia se
comunicava diretamente com os espíritos, fazendo a ligação entre os dois mundos”.
(REDIKER, 2011, p. 122).
Equiano
também conta que seu povo era alegre, pacifico, que gostava de cantar, dançar e
declamar poesia. “Somos quase uma nação de dançarinos, músicos e poetas”.
Mas, a vida
de Equiano mudaria drasticamente quando este tinha apenas 11 anos de idade. Ele
dizia que as crianças deviam evitar o máximo a falar com os estranhos, porque
alguns desses poderiam ser traficantes de escravos, logo, existia a há vários
séculos em vários cantos do continente a prática, de se raptar, homens,
mulheres e crianças para se tornarem escravos. Assim, em alguns lugares, onde
esta ameaça era maior, as pessoas andavam bem armadas e evitavam andar
sozinhas. As crianças ficavam em casa ou sob a vigia de vários adultos. Mas, no
caso de Equiano isso não viera a acontecer num certo dia.
Ele não
explica por qual motivo, seus pais, irmãos e os escravos, o deixara sozinho com
uma de suas irmãs em casa. Ele também não menciona o nome da irmã e a idade que
tinha, mas pelo que parece deveria ser poucos anos mais velha que ele. Em seu
relato, os dois ouviram o som de passos e vozes, quando perceberam, dois homens
e uma mulher haviam pulado o muro de sua casa, invadiram a residência e os
prenderam. “Num abrir e fechar de olhos nos pegaram”. Ele e sua irmã foram
rapidamente retirados de casa e levados para a floresta, onde no cair da noite,
os seqüestradores chegaram a um casebre no meio da mata onde passaram a noite.
Desse dia em
diante, Equiano e sua irmã nunca mais voltariam a rever seus pais, irmãos,
parentes e amigos. A dura jornada como escravizados havia-se iniciado. No dia
seguinte, eles levantaram cedo e seguiram viagem por uma trilha na floresta,
até emergirem numa estrada, lá Equiano disse que começou a gritar, pedindo
ajuda para algumas pessoas que havia avistado. “Meus gritos serviram apenas
para que eles me amarrassem com mais força, tapassem minha boca e me pusessem
dentro de um saco grande. Taparam também a boca de minha irmã e amarram-lhe as
mãos, e assim seguimos até sair das vistas daquela gente”.
Equiano
conta também que a tristeza era tão grande que ele e sua irmã não tinham
vontade de comer, mas os seqüestradores os forçavam a comer, forçando a comida
goela abaixo, e até mesmo ameaçando bater-lhes para que comessem. Se não
estivessem saudáveis não seriam vendidos. “O único consolo que tínhamos era
passar toda a noite nos braços um do outro, banhar um ao outro com as nossas
lágrimas”.
A situação
iria ficar ainda mais triste. Dias depois, quando os dois se encontravam no
lugar que seriam vendidos, lá Equiano fora separado de sua irmã. “Ela fora
arrancada de mim e imediatamente levada embora, e eu fiquei numa perturbação
indescritível”. Ele passou os dias seguintes chorando e comendo a força, já não
tinha mais apetite e forças para comer.
Equiano fora
posteriormente vendido a um ferreiro o qual era chefe de um clã. Ele passou
cerca de um mês vivendo com a família do ferreiro, mas era bem tratado, já que
como ele havia dito anteriormente, os escravos eram bem tratados e considerados
como da família. Em meio a este período, pensou várias vezes em fugir, mas não
sabia qual era o caminho de casa. Um dia ouviu alguém dizer que se tentasse ir
embora, iriam pegá-lo novamente, ou ele acabaria se perdendo na floresta, já
que sua vila ficava muito distante dali. Equiano escreve em seu relato que o
pânico tomou o seu coração naquele momento. Mesmo tendo a liberdade de
perambular pela vila, não poderia voltar para casa.
Posteriormente
o seu dono o vendeu para um mercador de escravos. Equiano iniciaria sua jornada
para a costa, para o mar. “Dessa vez fui levado rumo à esquerda do sol
nascente, através de terríveis desertos e matas sombrias, e em meio a medonhos
rugidos de feras”.
“Enquanto
continuava sua jornada rumo ao litoral, Equiano tornou a ver sua irmã. A julgar
pelo que ele escreveu aqui e em outro ponto de sua biografia, aquele foi um dos
momentos mais emocionantes de sua vida: “Assim que ela me viu, soltou um grito
agudo e correu para meus braços – eu fiquei totalmente sem ação: nem um dos dois
conseguia falar; ficamos por muito tempo abraçados, sem conseguir fazer nada a
não ser chorar”. (REDIKER, 2011, p. 125).
Mas o
momento de felicidade logo acabaria. O mercador ficara tão comovido, que havia
deixado que os dois passassem a noite juntos, mas na manhã seguinte, como o
próprio se refere na “manhã fatal”, ele fora novamente separado de sua irmã, e
dessa vez fora a última vez que ele a viria. “Agora eu estava ainda mais
infeliz, se é que era possível, do que antes”. Equiano disse que nunca mais
voltou a ter noticias de sua irmã e de sua família, mesmo tendo se passado
vários anos. Ele disse também que a imagem de sua irmã sendo levada embora a
segunda vez, ficou impregnada em suas lembranças e em seu coração, pelo resto
da vida.
Ele
continuou a seguir viagem e fora vendido e comprado várias vezes, até que fora
comprado por um rico comerciante da cidade de Tinmah. Ele descreve a cidade
como sendo grande e bela, o que o impressionou já que nunca havia ido numa
cidade antes. Lá ele disse que comeu pela primeira vez coco e cana-de-açúcar, e
viu o tão cobiçado dinheiro, o qual chamou de “core” (akori).
Equiano
passou pouco tempo como escravo do comerciante, logo fora comprado por uma
velha e rica viúva. O motivo se deu pelo fato de que Equiano havia se tornado
um grande amigo do filho da viúva o qual tinha sua idade. Em seu relato ele
passou dois meses agradáveis ao lado daquelas pessoas, eram tão bem tratado e
respeitado que não achava que fosse mais um escravo. Porém de alguma forma, o
qual ele não menciona, ele fora vendido novamente para os mercadores de escravo
e voltou a seguir viagem.
“Até aquela
altura, todas as pessoas com quem Equiano deparara em sua jornada lhe eram
culturalmente familiares. De modo geral, elas tinham as mesmas “maneiras,
costumes e língua”; eram ou haveriam de se tornar ibos”. (REDIKER, 2011, p.
125).
Mas a
realidade e o mundo que Equiano conhecia iriam mudar drasticamente. Sua viagem
como escravo o levaria até o mar, lá ele conheceria os temidos homens brancos.
Ao longo de sua viagem cruzou várias terras e conheceu distintos povos, ficou
fascinado com alguns e chocados com outros, devidos a sua barbárie, falta de
decência e falta de respeito com os deuses. Após cerca de seis ou sete meses
ele chegou ao litoral, provavelmente ao porto de Bonny próximo ao rio Bonny o
qual lhe havia causado espanto por ser um rio muito largo e onde várias canoas
o cruzavam, e pessoas viviam em barcos.
Ele aguardou
por alguns dias no porto até ser vendido para um navio inglês. De lá ele seguiu
com outras dezenas de escravos por canoas até abordo do tal navio. Equiano diz
que ficou maravilhado com a imensidão do mar e espantando com aquele estranho
navio. “Eu nunca tinha ouvido falar de homens brancos, nem de europeus, nem do
mar”.
Ao chegar
próximo ao navio ele avistou os tais homens brancos. “Homens brancos de olhares
horríveis, rostos vermelhos e cabelos compridos”. Ele dizia que estes homens se
vestiam com roupas estranhas e eram fedorentos. Posteriormente ele descobriria
que eles não tinham o costume de tomar banho regularmente, assim como o seu
povo fazia.
Quando subiu
a bordo ficou reunido com vários outros escravos, vindos de diferentes terras,
sendo observados por aqueles estranhos homens.
“Além dos
ibos, muito provavelmente estariam a bordo também nupes, igalas, idomas, tivs e
agatus, do norte da aldeia de Equiano; os ijos do sudeste; e, do leste, toda
uma hoste: ibibios, anangs, efiques (todos falantes de efique), ododops, ekois,
eajaghams, ekrikuks, umons e enyongs”. (REDIKER, 2011, p. 127).
Equiano
disse que alguns deles sacolejaram o seu corpo, pediram para que mostrasse os
dentes e observaram para ver se ele não tinha nenhum “defeito”. Equiano como os
de mais tremia de medo, em suas faces emanava um semblante de profundo pesar.
Porém o jovem menino sofreria seu primeiro grande susto a bordo do navio
negreiro.
Após ser
“conferido” pelos europeus se estava tudo bem com ele, Equiano notou um grande
caldeirão no convés e alguns negros próximos a ele, logo um terrível pensamento
lhe tomou, aqueles homens brancos deveriam ser canibais. Ele disse que ficou
tão chocado que desmaiou naquele momento.
“Quando
Equiano voltou a si, ficou apavorado, mas logo haveria de descobrir que o
desfile de horrores mal começara. Foi levado para o convés inferior, onde um
cheiro nauseabundo logo o fez sentir-se mal. Quando dois membros da tripulação
lhe ofereceram comida, ele esboçou uma fraca recusa. Eles o arrastaram
novamente para o convés superior, amarraram-no molinete e o chicotearam. Quando
a dor percorreu-lhe o pequeno corpo, seu primeiro pensamento foi fugir pulando
na água por sobre a amurada do navio, ainda que não soubesse nadar. E então
descobriu que o navio negreiro era equipado com redes justamente para evitar
esse tipo de resistência desesperada”. (REDIKER, 2011, p. 119).
Mesmo
equipado com redes, Equiano relatou que três escravos conseguiram escapar das
redes e caírem no mar, dois acabaram se afogando, cometendo suicídio, e o
terceiro fora recapturado e barbaramente castigado. Em seu relato abordo do
navio negreiro, ele descreve o navio com fascínio e terror; fascínio porque ele
não sabia ao certo com aquele grande barco se movimentava no mar, para ele, os
homens brancos eram maus espíritos e possuíam poderes mágicos. Ele também
conta, que não entendia como a âncora podia fazer o navio parar, como o navio
mudava de direção e como os ingleses faziam para se localizar naquela imensidão
azul. Tal ideia de magia seria refutada, quando num dia Equiano observava um
dos marujos utilizar um estranho objeto, era uma luneta. O marujo notando que a
criança estava curiosa o deixou olhar pela luneta, quando Equiano percebeu que
aquele estranho objeto aumentava as coisas, disse para o homem que aquilo era
magia. Os marinheiros riram da ingenuidade do garoto.
Mas, nem
tudo fora fascínio do navio, ele relatou muitas atrocidades que viu e ouviu
durante sua viagem a bordo do navio negreiro. Equiano disse que viu muitos
homens e mulheres serem chicoteados por terem desobedecido alguma ordem; disse
que alguns escravos foram espancados; marcados a ferro como se fossem animais;
algumas mulheres foram estupradas; eles recebiam pouca comida e pouca água;
ficavam acorrentados no convés inferior, o pior lugar do navio. Sobre o convés
inferior ou porão, ele conta que o lugar era apertado, escuro, insalubre,
fedorento, abafado, o teto era baixo, assim os escravos tinha que ficar
agachados ou deitados, sendo que ficavam acorrentados pelos pés, mãos e às
vezes pelo pescoço, como se fossem cães.
“Os cativos
ficavam apinhados em espaços fechados, cada espaço mais ou menos igual ao de um
cadáver num caixão. As “correntes esfolavam” a carne macia dos pulsos,
tornozelos e pescoços. Os cativos sofriam com o calor terrível, a pouca
ventilação, o “suor abundante” e o enjoo O mau cheiro, que já era
“repugnante”, se tornou “absolutamente pestilencial”, uma vez que o suor, o
vômito, o sangue e os “vasos das necessidades”, cheios de excrementos, “por
pouco não os sufocavam””. (REDIKER, 2011, p. 129-130).
Equiano em
seu relato disse que naquele momento preferiu esta na pele do mais reles
escravo de sua terra ou que a morte o levasse. Porém mesmo tendo sido
chicoteado várias vezes ao longo da viagem e ficado doente, principalmente
devido ao enjôo, Equiano disse que tivera a sorte de conhecer algumas mulheres
que passaram a cuidar dele, que lhe davam banho e carinho, como se fosse seu
próprio filho. Pelo fato de esta doente passava parte do dia no convés
superior, mesmo assim a vida num navio negreiro não era nada agradável para um
escravo. Equiano chegou a pensar em tentar se jogar no mar e cometer suicídio,
já que não sabia nadar e mesmo que soubesse seria em vão. Ele havia perdido sua
liberdade e sua própria identidade. A bordo do navio negreiro, ele passou a ser
chamado pela tripulação pelo nome de Michael (Miguel em inglês). Ele não
gostava de ser chamado assim, mas nada podia fazer naquele momento.
Ele
aproveitou os momentos que ficava solto no convés para observar o trabalho dos
marinheiros, isso lhe seria muito útil posteriormente, já que o próprio viria a
trabalhar como marinheiro por muitos anos até conseguir comprar sua liberdade.
A viagem
através da Passagem do Meio nome pelo qual alguns se referiam à travessia do
Atlântico durou mais de quarenta dias. Equiano deixou o porto de Bonny na
África e fora levado até a ilha de Barbados no Caribe. Ele conta que quando os
ingleses avistaram terra, ficaram felizes e comemoravam a chegada, porém para
os escravos não havia em parte felicidade alguma em ter-se chegado naquela
estranha e distante terra. Abordo do navio, Equiano descobriu que os homens
brancos não eram canibais como ele supunha que fossem, porém, quando ele
chegasse em terra seria vendido novamente como escravo, e passaria a trabalhar
para eles. Ele pensou naquele momento que trabalhar seria melhor do que ser
devorado, mas logo repensaria esta sua afirmação.
“Diante
deles estava Barbados, epicentro da histórica revolução do açúcar, joia da
coroa do sistema colonial britânico, e uma das sociedades escravagistas
desenvolvidas de modo mais cabal – e, portanto mais brutal – que se podia
encontrar em todo o mundo”. (REDIKER, 2011, p. 131).
Já em terra,
os escravos foram postos a venda. Equiano disse que foram separados por idade,
sexo e altura. Os compradores os examinavam como se fossem meros objetos. “eles
pediam para que pulássemos”; “e apontaram para a terra, querendo dizer que
iríamos para lá”.
Enquanto
esperava ser vendido, ele ficou espantado com tudo o que havia visto naquela
ilha. Uma coisa que lhe chamou a atenção foram os homens montados a cavalo. Ele
ficou fascinado com aquilo, já que em sua terra não havia animais como aqueles,
nos quais se podiam montar. Eles não montavam nos bois.
Dias se
passaram e as vendas continuaram, Equiano diz em seu relato, que viu irmãos,
irmãs, parentes e amigos ser separados, isso o fizera lembrar-se de sua irmã.
De qualquer forma, muitos dos amigos que ele fizera nestes dias de viagem,
foram todos embora, levados por distintos donos para vários lugares. Ele e
alguns escravos não acabaram sendo vendidos na ilha, disseram-lhe que era muito
pequeno e magro, logo conotava ser fraco de saúde. Assim, alguns dias depois,
eles foram vendidos para um comerciante de escravos, então foram levados até
uma chalupa, possivelmente o navioNancy do capitão Richard Willis.
O navio seguiria viagem para o rio York, na colônia inglesa da Virginia
(futuramente estado dos Estados Unidos).
“Comparado
com o navio negreiro, o número de escravos a bordo agora era muito menor, o
clima menos tenso e violento, e a comida era melhor, pois o capitão pretendia
engordá-los para vendê-los mais ao norte. Equiano escreveu: “Naquela travessia
fomos mais bem tratados que quando vínhamos da África, e nos davam bastante
arroz e carne de porco gorda”. (REDIKER, 2011, p. 134).
A bordo da
chalupa, Equiano recebera um segundo nome, passando a ser chamado de Jacob
(Thiago em latim). Ao chegar à Virginia ele e seus companheiros foram vendidos,
mas para seu azar, alguns destes foram vendidos em lotes, para irem trabalhar
nas fazendas, Equiano fora vendido sozinho. “Eu ficava o tempo todo sofrendo,
me lamentando e, mais do que qualquer outra coisa desejando a morte”.
Equiano
passou alguns meses na Virginia como escravo de distintos patrões, até que fora
comprado por um capitão da marinha mercante, chamado Michael Henry Pascal. O
capitão lhe dissera que iria dá-lo de presente a uma pessoa na Inglaterra.
Assim, o garoto fora levado a bordo do navioIndustrious Bee, lá ele
passou a ajudar os marujos, e a ser bem alimentado e tratado. Fora abordo deste
navio que Equiano começou a repensar sua ideia sobre os homens brancos, os
quais ele os via como todos sendo bárbaros e cruéis. Nessa viagem ele conhecera
um rapaz de quinze anos, chamado Richard Baker.
“Filho de um
senhor de escravos (sendo ele próprio dono de escravos), instruído, de
“temperamento muito amável” e com uma mentalidade “acima de preconceitos”,
Baker ajudou o menino africano, que contou “Ele se mostrou muito afetuoso e
atencioso para comigo, e em troca passei a dedicar-lhe grande afeto”. Os dois
se tornaram inseparáveis, e Baker traduzia para Equiano e lhe ensinava muitas
coisas úteis”. (REDIKER, 2011, p. 135).
Abordo do Industrious
Bee, ele recebeu o quarto e último nome pelo qual ficaria conhecido. A
tripulação passou a chamá-lo de Gustavus Vassa. Como ele aponta em sua
biografia, não gostava de ser chamado por esse nome, mas curiosamente preferia
ser chamado de Jacob, contudo o mesmo não explica o porquê dessa preferência.
De fato, Equiano só voltou a assumir seu nome próprio quando se tornou livre,
passando a ser chamado de Olaudah Equiano, embora fosse mais conhecido na época
como Gustavus Vassa.
Chegando à
Inglaterra, ele fora enviado para a casa da irmã do capitão Pascal, lá a
senhora lhe ensinou a ler e a escrever em inglês e no ano de 1759, Equiano fora
batizado e convertido ao anglicanismo na Igreja St. Margaret. Equiano se
tornaria um cristão devoto.
Ele passou
os anos seguintes trabalhando para outros proprietários, já que fora vendido
mais algumas vezes. Nesse caso, trabalhava como marinheiro, carregador,
comerciante e exercia outras atividades, tanto na Inglaterra como nas colônias
britânicas. Em 1765, seu dono Robert King permitiu que ele pudesse comprar sua
alforria, assim ele se tornou um escravo livre.
Após 1776 com a Independência
dos Estados Unidos e os confrontos entre a Inglaterra e a recém pátria fundada
que perduraria até a década de 80, Equiano aproveitou para ingressar nos
movimentos abolicionistas e de antitráfico, contando com o apoio principalmente
dos quakers americanos, defensores fervorosos dos preceitos protestantistas e
contra a escravidão. Equiano passou a ser ajudado pelo seu antigo dono Robert
King, o qual era um importante quaker da Filadélfia, agora estado americano, e
assim começou a conhecer outras pessoas que compartilhavam da mesma ideia,
entre as quais o político inglês William Wilberforce (1759-1833).
William Wilberforce
Equiano
passou os próximos vinte anos de sua vida, participando do movimento
abolicionista e lutando para que fosse decretado um fim no tráfico e na
escravidão. Wilberforce se tornou adepto deste pensamento e a partir de 1787,
passou a defender os direitos dos escravizados, e a lutar pelo fim do tráfico.
Em 1789,
Equiano publicou sua autobiografia, intitulada A Narrativa
Interessante de Olaudah Equiano ou Gustavus Vassa, o Africano. Seu
livro logo se tornou um Best-seller, vendo mais de 50 mil exemplares na
Inglaterra, além de contar com várias edições. A sociedade inglesa ficou
chocada e surpresa com a história deste homem, já que até então grande parte do
povo inglês desconhecia a realidade na África, do tráfico e da escravidão. Seu
livro fora uma das primeiras obras de escritores africanos a serem publicadas
na Grã-Bretanha e a primeira a fazer sucesso. Sua obra fora considerada como a
maior representação literária contra a escravidão no século XVIII.
Capa da autobiografia de Olaudah Equiano, 1789
Em 1792 ele
se casou com Susana Cullen, e juntos tiveram duas filhas, Ana
Maria Vassa e Joanna Vassa. Sua esposa veio a falecer em
1796, e no ano seguinte Equiano veio a falecer em 31 de março aos 52 anos.
Contudo as causas de sua morte ainda não são bem explicadas. Sua filha Ana
Maria morreu aos quatro anos, restando apenas Joanna, a qual se casou e viveu
vários anos.
Equiano não
conseguiu viver o suficiente para ver um de seus sonhos se realizar, o fim do
tráfico. Depois de vinte anos de embates, Wilberforce, e outros políticos,
membros da Igreja Anglicana, e membros da alta sociedade, conseguiram derrotar
a oposição em 1806, e no ano de 1807 fora aprovada a lei que punha fim ao
tráfico de escravos no Reino Unido.
A partir de
1810, a Inglaterra passou a levar esta imposição para as outras nações que
praticavam o tráfico, mesmo assim este permaneceu até o final do século em
diferentes partes do mundo.
Assista a seguir um trecho do filme AMISTAD, de 1997, que retrata como era feita a captura e o transporte (em meio as péssimas condições de vida que existiam nos navios negreiros), até a chegada à América.
Mahommah Garbo Baquaqua (1824?-1857?)
Diferente de Equiano, Baquaqua
já era adulto quando fora capturado como escravo e enviado para o Novo Mundo.
Ele conta que nasceu no reino de Zoogoo na África Central. Por
volta de seus vinte anos, se tornou guarda-costas de um governante local.
Baquaqua disse que fora traído e capturado por pessoas que tinham inveja dele,
por sua posição que havia assumido perante o governante, mesmo sendo um guarda-costas.
Assim, ele por volta de 1845, fora vendido como escravo para mercadores.
Ele acabou chegando à cidade deGra-fe,
lá conheceu os primeiros homens brancos. Ele relata que ficou na casa de um
destes homens, e fora servido por um escravo, o qual descobrira que era um
conterrâneo seu. Ele se chamava Woo-roo, e há dois anos havia sido
capturado e levado embora de Zoogoo. O conterrâneo o reconheceu devido a seu
corte de cabelo.
“Talvez caiba notar aqui que,
na África, as nações das distintas partes do território têm seus modos
diferentes de cortar o cabelo e são conhecidas, por essa marca, a que parte do
território pertencem. Em Zoogoo, o cabelo de ambos os lados da cabeça é raspado
e, em cima da cabeça, da testa até atrás, deixa-se o cabelo crescer em três
mechas redondas que ficam bem compridas mantendo-se os espaços entre eles
raspados rente à cabeça. Para alguém que é familiarizado com os diferentes
cortes, não há dificuldade em reconhecer a que lugar um homem pertence”.
(BAQUAQUA).
De Gra-fe, ele voltou a seguir
viagem com os mercadores de escravos através de um longo rio o qual não
especifica seu nome. Ele seguiu por este rio em direção ao mar, a onde seria
vendido para comerciantes portugueses.
“Estávamos há duas noites e um
dia nesse rio, quando chegamos a um lugar muito bonito, cujo nome não me
lembro. Não ficamos por ali por muito tempo, tão logo os escravos foram
reunidos e o navio estava pronto para velejar, fizemo-nos ao mar. Enquanto
estivemos nesse lugar, os escravos foram enjaulados, coloram-nos de costas para
a fogueira e deram ordens para não olharmos à nossa volta. Para se assegurarem
de nossa obediência, um homem se postou à nossa frente com um chicote na mão
pronto para açoitar o primeiro que marcava como as tampas de barril ou a qualquer
outro bem ou mercadoria inanimada”. (BAQUAQUA).
Enquanto estavam sendo levados
ao longo da praia em direção aos barcos que os conduziriam ao navio, Baquaqua
disse que naquele momento desejou que a terra se abri-se e a engolisse. Ele já
havia ouvido falar de como era a escravidão imposta pelos homens brancos, e já
estava ciente do terror que era.
Baquaqua relata que ele e os de
mais escravos foram acorrentados pelas mãos, pés e pescoços e conduzidos em
barcos até o navio negreiro. Para ele aquele navio deveria ser uma espécie de
“templo” móvel dos europeus, onde os escravos seriam massacrados ou
sacrificados ao Deus deles. Baquaqua era muçulmano, daí seu nome ser árabe, e
ser um pouco avesso ao cristianismo. Embora que essa aversão não se devesse ao
tráfico em si, já que os muçulmanos também o praticavam, mas sim na ideologia
religiosa. Baquaqua quando chegasse ao Novo Mundo, seria batizado e forçado a
seguir o cristianismo.
“Escravos vindos de todas as
partes do território estavam ali e foram embarcados. O primeiro barco alcançou
o navio em segurança, apesar do vento forte e do mar agitado; o próximo a se
aventurar, porém, emborcou e todos se afogaram, com exceção de um homem. Ao
todo, trinta pessoas morreram”. (BAQUAQUA).
Abordo do navio negreiro,
Baquaqua relatou:
“Fomos arremessados, nus, porão
adentro, os homens apinhados de lado e as mulheres do outro. O porão era tão
baixo que não podíamos ficar em pé, éramos obrigados a nos agachar ou a sentar
no chão. Noite e dia eram iguais para nós, o sono nos sendo negado devido ao
confinamento de nossos corpos. Ficamos desesperados com o sofrimento e a
fadiga”.
“A única comida que tivemos
durante a viagem foi milho velho cozido. Não posso dizer quanto tempo ficamos
confinados assim, mas pareceu ser muito tempo. Sofríamos muito por falta de
água, que nos era negada na medida das necessidades. Um quartilho por dia era
tudo que nos permitiam e nada mais”.
“Quando qualquer um de nós se
tornava rebelde, sua carne era cortada com uma faca e o corte esfregado com
pimenta e vinagre para torná-lo pacifico (!)”.
“Alguns foram jogados ao mar
antes que o último suspiro exalasse de seus corpos quando supunham que alguém
não iria sobreviver, eram assim que se livravam dele”.
Assista a seguir um trecho do filme AMISTAD, de 1997, que retrata como era feita a captura e o transporte (em meio as péssimas condições de vida que existiam nos navios negreiros), até a chegada à América.
Baquaqua
depois de cerca de 30 dias de viagem nestas péssimas condições, acabou chegando
à província de Pernambuco no Império do Brasil por
volta de 1845. Cinco anos depois, o imperador D. Pedro II,
declararia o fim do tráfico de escravos no Atlântico.
“Quando
desembarquei, senti-me grato à Providência por ter me permitido respirar ar
puro novamente, pensamento este que absorvia quase todos os outros”.
(BAQUAQUA).
Baquaqua
permaneceu em um mercado de escravos na costa por um ou dois dias, até se
vendido para um mercador que por sua vez o vendera em um mercado na cidade do Recife.
Lá um padeiro o comprou. Este vivia no interior, mas Baquaqua não especifica
onde exatamente, ele apenas disse que não ficava distante de Pernambuco.
“Sua família
era composta por ele, sua mulher, duas crianças e uma parente. Além de mim, ele
tinha quatro escravos. Ele era católico, e fazia regularmente as orações com a
família duas vezes por dia”.
O padeiro
estava construindo uma casa na época, logo pusera Baquaqua e os outros escravos
para trabalhar na construção. A casa seria feita de pedras, e as pedras ficavam
numa distância considerável. Baquaqua dizia que as pedras eram tão pesadas, que
era necessário dois ou três homens para ergue-lá e a colocarem sobre sua
cabeça. Ele relata que houve algumas vezes que não agüentou o peso e a largou
ao chão. Seu dono o chamava de cachorro, e lhe dava algumas chicotadas para não
mais repetir aquilo.
Terminada a
construção da casa, Baquaqua passou a trabalhar como vendedor de pão. Era o
responsável por vender o pão de porta em porta ou às vezes ficava na padaria
mesmo. Mas quando não conseguia vender tudo, às vezes era chicoteado para
aprender a vender tudo na próxima vez. Ele também relata que os outros escravos
eram dados a indisciplina e eram beberrões. Gastavam o pouco dinheiro que
conseguiam comprando aguardente. Logo o próprio Baquaqua acabou se juntando aos
seus amigos.
“Assim, um
dia, quando me mandaram vender pão como de costume, vendi apenas uma pequena
quantia e, com o dinheiro que recebi comprei uísque e bebi a vontade, voltando
para casa bastante embriagado. Quando fui fazer as contas da diária, meu senhor
pegou minha cesta e, descobrindo o estado em que as coisas estavam, fui muito
severamente espancado. Eu disse a ele que não deveria mais me açoitar e fiquei
com tanta raiva que me veio a ideia de matá-lo e, em seguida, suicidar-me”.
(BAQUAQUA).
Baquaqua
passou a entrar no vicio do álcool por que considerava uma forma de atenuar a
dura e miserável vida de escravo que levava. Quando era muçulmano, não podia
beber porque a religião islâmica proíbe os fieis o consumo de bebidas
alcoólicas, mas agora que era cristão, isso não era proibido totalmente. (no
cristianismo condena-se a embriaguez como um estado derivado do ato do pecado
da gula, nesse caso, beber em demasia).
Após ter
sido espancado pelo seu senhor, ele fora liberado. Ainda com dor e pulsante de
raiva, Baquaqua disse que naquele momento tentou cometer suicídio. Ele correu
até o rio ali perto e se jogou em suas águas, porém algumas pessoas que estavam
num barco viram que ele se afogava e o salvaram. Depois disso ele não tentou se
afogar novamente.
Depois de
toda esta rebeldia o padeiro o levou para a cidade e o vendeu para um mercador
de escravo. Baquaqua passou alguns dias em posse desse mercador até ser vendido
para um fazendeiro, o qual ele dizia ser muito cruel. No dia que fora comprado,
o fazendeiro também comprou duas mulheres, sendo uma jovem e bonita, essa
serviria como concubina para o fazendeiro. Ele passou algumas semanas
trabalhando para o fazendeiro até que o mesmo o vendeu para um navio negreiro
que seguia para o Rio de Janeiro. Lá ele passou duas semanas, até
ser vendido a um capitão de navio.
Baquaqua
relata que este capitão até fora mais condizente com ele, e não o maltratava
tanto, porém sua esposa, era uma mulher cruel. Enquanto trabalhava no navio
logo fora reconhecido por seu esforço e fora promovido a segundo camareiro.
Pouco tempo depois ele se tornou o primeiro camareiro.
“Fiz tudo
que estava em meu alcance para agradar meu senhor, o capitão, e ele, por sua
vez, depositou confiança em mim”. (BAQUAQUA)
Ele passou
um bom tempo trabalhando naquele navio. Até que um dia, o seu capitão fora
incumbido por um mercador inglês de transportar em seu navio algumas sacas de
café para Nova Iorque. Baquaqua e outros escravos seguiriam viagem
para os Estados Unidos.
“Tínhamos
aprendido que em Nova Iorque não havia escravidão, que era um país livre e que,
uma vez ali, nada tínhamos a temer de nossos cruéis senhores e estávamos muito
ansiosos para chegar lá”. (BAQUAQUA).
Baquaqua na
época desconhecia o fato de que nos Estados Unidos havia escravidão, mas esta
era mais intensa e agressiva nos estados do sul. Em Nova Iorque havia
escravidão, mas de forma mais moderada. A abolição nos Estados Unidos fora
apenas decretada em 1865 pelo presidente Abraham Lincoln, após o término
da Guerra Civil Americana (1861-1865).
Abordo do
navio inglês ele conheceu um marinheiro que falava um pouco de inglês. A
primeira palavra em inglês que Baquaqua e seus amigos aprenderam fora free (livre).
À medida que atravessavam o Atlântico rumo ao norte, Baquaqua dizia que a cada
dia que se passava que estava chegando mais próximo de Nova Iorque, já se
sentia um homem livre.
“Aquela foi
à época mais feliz da minha vida, mesmo agora meu coração palpita com jubiloso
deleite quando penso naquela viagem, e creio que Deus todo misericordioso tudo
ordenou para o meu bem; como me sentia grato”. (BAQUAQUA).
Mas antes de
Baquaqua chegar em seu destino este ainda viria a sofrer durante a viagem. Num
dia de vento forte, Baquaqua acabou não ajudando de forma correta os outros
escravos, isso enfureceu o capitão do navio o qual o chicoteou severamente.
Naquele momento ele disse para que o capitão o matasse de vez, mas o capitão
não fizera isso. Baquaqua disse que não iria implorar por misericórdia e assim apanhou
severamente. Ele conta que suas costas e braços ficaram com marcas profundas,
dilacerações causadas pela surra que levou. “embora estivesse machucado e
despedaçado, meu coração não estava subjugado”.
Dias depois
eles chegaram ao porto de Nova Iorque, em seu relato ele conta que fora bem
recebido pelos americanos. Depois de alguns dias trabalhando, Baquaqua fez
menção em dizer ao seu dono que não queria voltar mais ao Brasil, que ficaria
ali e seria um homem livre. O capitão indignado com ele, ordenou que três
escravos o capturassem, e assim Baquaqua passou alguns dias preso no navio, até
que num dia fora solto, e o capitão concordou em lhe conceder a liberdade.
Baquaqua desceu do navio alegre, mas fora capturado por um guarda do porto, o
qual achara que ele tentava fugir. Ele passou uma noite trancafiado na prisão,
até que o seu dono fora libertá-lo e o levou de volta ao navio. Isso havia sido
no sábado e na segunda-feira, a liberdade chegou.
Baquaqua
conta que três carruagens pararam no porto e homens bem vestidos subiram a
bordo do navio, lá estes obrigaram o capitão a baixa a bandeira e a libertar os
escravos que trazia consigo, o capitão relutou em aceitar tais condições, mas
acabou concordando.
“Fomos
posteriormente, levados em suas carruagens, acompanhados pelo capitão, a um
prédio muito bonito com um pórtico esplêndido de mármore, era circundada por
uma elegante grade de ferro, tendo portões em diversos lugares, ornamentada ao
redor com árvores e arbustos de vários tipos”. (BAQUAQUA).
Tal lugar
era a prefeitura de Nova Iorque, lá eles foram conduzidos até a presença do
cônsul do Brasil. O cônsul lhes questionou se queriam voltar para o Brasil, uma
escrava disse que queria voltar, Baquaqua e outros disseram que não iriam
voltar. Após várias perguntas, os escravos foram conduzidos para alojamentos
que mais pareciam uma prisão. Baquaqua disse que temia que o cônsul não
concordasse com eles e os levaria a força de volta para o Brasil.
Porém depois
de algumas noites, alguém acabou libertando os escravos, eles fugiram e
seguiram viagem para a cidade de Boston em Massachussetts. Baquaqua não diz o
nome destas pessoas, mas diz que eram amigos interessados em libertá-los. Ele
permaneceu cerca de um mês em Boston, até que ganhou a possibilidade de viajar
mais uma vez, ofereceram a oportunidade de ir para a Inglaterra ou para o
Haiti. Baquaqua escolheu ir para o Haiti, pois acreditava que o clima de lá
fosse parecido com o da sua terra.
No Haiti ele
residiu por dois anos na cidade de Porto Príncipe, já sendo um homem livre. Lá
ele passou a ser protegido e a trabalhar para a Sociedade Missionária Batista
Livre. Baquaqua fora educado para se tornar um missionário cristão e
possivelmente viajar para a África para converter mais devotos. Contudo ele não
se tornou missionário e no ano seguinte em 1849, voltou para Nova Iorque onde
ingressou no Colégio Central de Nova York. Ele permaneceu no colégio até o ano
de 1853, mas não se sabe se chegou a se formar.
Entre 1853 e
1854 ele se mudou para o Canadá, lá conheceuSamuel Moore, o qual se
interessou por sua história e decidiu escrever sua biografia. Pelo fato de não
saber falar francês e inglês fluentemente, ele narrou a maior parte de sua
história em português. Assim, Moore a traduziu e a publicou em 1854, sob o
titulo de A Biografia de Mahommah G. Baquaqua, um nativo de Zoogoo,
do interior da África.
A obra fora
publicada em Detroit em língua inglesa, logo se tornou um livro conhecido, mas
não fizera tanto impacto como fora o livro de Equiano, já que na época de
Baquaqua a escravidão e o tráfico nos estados do norte dos Estados Unidos e no
Canadá praticamente não existiam.
Depois disso
ele viajou para a Inglaterra em 1855, e de lá não se conhece mais nada a
respeito de sua vida. Acredita-se que tenha morrido em 1857, porém ainda é uma
data questionada.
NOTA: Equiano é retratado no filme Jornada pela Liberdade (Amazing
Grace), de 2006. No filme foca-se a atuação de William Wilberforce na luta
para se aprovar uma lei pondo fim ao tráfico no Reino Unido.
Referências:
REDIKER, Marcus. O navio negreiro: uma história humana.
Tradução de Luciano Vieria Machado, São Paulo, Companhia das Letras, 2011.
(Capitulo 4: Olaudah Equiano: espanto e terror).
LARA, Sílvia H. (Apresentação). Biografia de Mahommah G. Baquaqua.
Revista Brasileira de História. São Paulo. V. 8, n. 16, mar./ago., 1988, p.
269-283.
KLEIN, Herbert. A África na época do tráfico de escravos no Atlântico. In:
_____________. O tráfico de escravos no Atlântico: novas abordagens
para as Américas. Tradução e Revisão Francisco A. M. Duarte, Elsie
Ortega Rossi, José Tadeu de Sales, Mariane Banks. Ribeirão Preto: FUNPEC, 2004,
p. 9-21; p. 47-73.